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Heteroidentificação em 2025: quando o “fenótipo do momento” ameaça a dignidade e a segurança jurídica

Otávio Gomides Monteiro*


Imagine o cenário: você estuda por meses para realizar um concurso público. Obtém um ótimo resultado na prova objetiva e discursiva e, ao final, descobre que precisa passar pela etapa de heteroidentificação para confirmar a autodeclaração como pessoa negra. Vêm as dúvidas: o que exatamente essa comissão avalia? Documentos antigos valem? E se eu for validado em um concurso e indeferido em outro? Em 2025, a legislação federal deu respostas mais claras — e, também, mais instrumentos para o candidato se proteger.


A Lei n. 15.142/2025 recolocou as ações afirmativas no centro do jogo e ampliou para 30% a reserva de vagas nos concursos e seleções federais, repartindo-as entre pessoas negras (pretas e pardas), indígenas e quilombolas. O passo seguinte veio com o Decreto n. 12.536/2025 e, já no dia seguinte, com a IN Conjunta MGI/MIR/MPI n. 261/2025, que desceram a política ao cotidiano dos editais. O desenho é direto: quem opta pela reserva deve, obrigatoriamente, passar pela confirmação mesmo quando teria vaga pela ampla concorrência; a comissão avalia exclusivamente o fenótipo, isto é, características físicas socialmente visíveis; e não se admitem laudos médicos, genéticos ou declarações de ancestralidade.


Até aqui, a engenharia normativa merece aplauso. Há comissões específicas, filmagem do ato, parecer escrito e dupla instância administrativa. O problema mora em uma cláusula importada do Judiciário e hoje influente no Executivo: a orientação de aferir as características “ao tempo da realização do procedimento”. Em tese, ela combate fraudes.

Na prática, congela a identidade racial num instante. Nada muda no corpo do candidato; muda apenas a percepção da banca naquele dia. Assim, uma pessoa pode ser validada como parda em um certame e indeferida em outro, sem que exista fator novo que explique a guinada. Legalidade formal? Sim. Compatibilidade com dignidade, autodeterminação identitária e segurança jurídica? Eis a fricção que precisamos enfrentar.


Heteroidentificação


Identidade racial é construção social, mas não é volátil. Se o critério é fenotípico, ele não nasce e morre a cada sessão de heteroidentificação. A fórmula do “momento” escorrega para um paradoxo: o Estado reconhece hoje e nega amanhã o mesmo fenótipo. Esse pêndulo identitário fragiliza a confiança do candidato e desvirtua a finalidade das cotas, que pedem critérios estáveis e previsíveis. A solução não está em transformar aprovações pretéritas em “carteirinha de cotista”, e sim em recalibrar o ônus de fundamentar quando a Administração decide romper com decisões anteriores.


Aqui, há de ser proposta três consequências práticas. Primeiro, presunção de continuidade: se uma comissão já reconheceu o fenótipo do candidato, a nova banca não pode ignorar esse dado sem explicação reforçada. Deve identificar, a partir do vídeo e do parecer, quais traços observados sustentam a conclusão diversa e porque, socialmente, a percepção mudou. Segunda motivação qualificável: filmagem e decisão escrita só cumprem seu papel quando o recurso consegue confrontar descrições concretas — e não fórmulas vazias como “não se enquadra”. Terceiro, controle de legalidade proporcional: quanto maior a dissonância entre certames, maior o escrutínio sobre composição da banca, aderência ao edital, observância do decreto e coerência do parecer.


É comum a objeção: “aproveitar resultados passados abriria brecha para fraudes”. Não se trata de aproveitamento automático; trata-se de respeito à história identitária do candidato como fato relevante que eleva o dever de motivar do Poder Público. A decisão continua sendo caso a caso e válida apenas para o concurso específico, mas não pode fingir que o mundo começa na porta da sala de heteroidentificação. Quando a Administração desconsidera por completo confirmações anteriores sem motivação robusta, erra o alvo do antifraude e ofende a dignidade de quem precisa, repetidas vezes, “explicar quem é”.


Note que o pacote de 2025, ao mesmo tempo em que restringe a prova ao fenótipo, fortalece garantias de processo: concorrência concomitante, participação em todas as fases quando a nota mínima é alcançada, comissões criadas especificamente para o ato, filmagem obrigatória e parecer escrito. É um avanço civilizatório. O que deve ser buscado é uma postura decisória compatível com esses ganhos: se a regra manda olhar “o fenótipo aqui e agora”, a mesma regra impõe motivação densa quando a avaliação se afasta de decisões pretéritas. Em linguagem simples: se ontem o Estado disse “sim” e hoje diz “não”, precisa contar a história inteira, com base no vídeo, na ata e no edital. Do contrário, a discussão deixa o campo do mérito e entra no terreno da ilegalidade.


Qual a estratégia para o candidato?


Para o candidato, a estratégia é objetiva e sem mistério. Leia o edital com lupa nos itens de cotas; na sessão, verifique quem compõe a banca e assegure a gravação; diante de indeferimento, requeira acesso ao vídeo e ao parecer; recorra enfrentando as razões apresentadas, apontando qualquer uso de elemento não fenotípico e a ausência de análise situada no procedimento; se houver validação anterior, junte-a não como prova vinculante, mas como dado persuasivo que exige fundamentação reforçada para ser superado.


Persistindo a decisão imotivada, a via judicial não serve para “reavaliar” o seu fenótipo; serve para refazer o procedimento com observância estrita do decreto e da instrução normativa. E, em paralelo, confirme sua permanência na ampla concorrência quando a pontuação permitir, porque o indeferimento na cota não autoriza excluir o candidato do concurso.


As ações afirmativas avançam quando combinam firmeza contra fraudes com respeito à dignidade e previsibilidade. A legislação de 2025 deu o arcabouço. Falta garantir que, na prática, o fenótipo não vire uma polaroid descartável, mas se mantenha como marca socialmente reconhecível e consistente, avaliada com seriedade, coerência e responsabilidade. Esse é o compromisso que se espera das bancas; é também o direito de quem dedica anos de estudo para conquistar, com justiça e segurança, o seu lugar no serviço público.

*Otávio Gomides Monteiro é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Advogado do Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi (GMPR) Advogados. Especialização: Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás em parceria com a ESA-GO. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-GO. Contato: otaviomonteiro@gmpr.com.br

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