Controle judicial nos concursos públicos
- GMPR Advogados

- 15 de set.
- 4 min de leitura
Entre a legalidade e a autonomia da banca
Otávio Gomides Monteiro*
O concurso público, no imaginário coletivo brasileiro, representa não apenas uma forma de ingresso no serviço público, mas também um caminho de estabilidade e ascensão social. A expectativa criada em torno de cada certame é imensa, sobretudo diante da dedicação e dos sacrifícios pessoais exigidos dos candidatos. É justamente nesse cenário que surge uma das maiores frustrações do candidato: a percepção de que determinada questão da prova foi mal formulada, ambígua ou até mesmo equivocada. Diante disso, muitos recorrem ao Poder Judiciário em busca da anulação da questão ou da revisão da etapa. Mas até que ponto essa interferência é juridicamente possível?
O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão em sede de repercussão geral no Tema 485 – RE 632.853/CE, firmando a tese de que não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, ressalvadas as hipóteses de flagrante ilegalidade ou inconstitucionalidade. Em outras palavras, a regra é clara: a condução do concurso cabe à Administração Pública, e somente situações excepcionais autorizam o controle judicial. Essa diretriz preserva a separação dos poderes e garante a segurança jurídica dos certames, evitando que o Judiciário se torne uma instância revisora das escolhas técnicas das bancas.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reforça essa limitação. No AgInt no REsp 1.978.102/DF (2023), ficou assentado que é vedado ao Poder Judiciário reexaminar critérios de elaboração e correção de provas, sob pena de indevida incursão no mérito administrativo, salvo diante de ilegalidade manifesta. Esse entendimento ecoa também em tribunais estaduais, como demonstrado no julgamento do Tribunal de Justiça de Goiás no processo n. 5029959- 72.2025.8.09.0051.
No caso, um candidato ao cargo de Policial Penal questionou diversas questões da prova objetiva, alegando vícios como ambiguidade, cobrança de conteúdo não previsto no edital e erro conceitual. Pleiteou a anulação das questões e a reclassificação no certame. O Tribunal, contudo, negou o pedido ao concluir que não havia ilegalidade flagrante nem desconformidade com o edital, ressaltando que não compete ao Judiciário substituir a banca examinadora para reavaliar respostas ou critérios técnicos de correção.
Outro exemplo paradigmático ocorreu no julgamento do Mandado de Segurança n.1010661-79.2025.4.01.0000 pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no qualum candidato ao cargo de Analista Judiciário – Arquitetura, sustentou que umaquestão da prova objetiva violava norma da ABNT, por suposta inexistência dealternativa correta. A banca organizadora, entretanto, demonstrou que o gabaritooficial estava embasado em cálculo técnico compatível com a norma deacessibilidade, afastando qualquer erro material.
Diante disso, o TRF1 denegou a segurança, afirmando que a mera divergência
interpretativa não autoriza a intervenção judicial e que admitir a revisão de critérios técnicos implicaria retirar da banca sua autonomia, transferindo ao Judiciário uma função que não lhe cabe.
Isso não significa, contudo, que os candidatos estejam desprotegidos contra arbitrariedades. A Justiça pode — e deve — intervir quando o erro for tão evidente que comprometa a isonomia entre os concorrentes. É o caso de questões com mais de uma alternativa correta, em contrariedade ao edital, ou daquelas que apresentem erro material grosseiro que torne impossível a compreensão adequada do enunciado. Nessas situações, o Judiciário não atua como “corretor” da banca, mas como guardião da legalidade e da igualdade entre os candidatos.
Imagine, por exemplo, uma questão objetiva que, ao ser analisada, apresenta mais de uma alternativa correta, em flagrante violação ao edital que exige resposta única. Nesse cenário, a isonomia entre os candidatos é rompida, pois diferentes interpretações conduzem a respostas igualmente plausíveis. Do mesmo modo, há casos em que a banca adota uma terminologia incorreta ou equivocada para o contexto do enunciado da questão, gerando erro material grosseiro capaz de induzir todos ao equívoco.
Para o candidato, a mensagem que se extrai dessa construção jurisprudencial é de cautela. Nem toda insatisfação com o gabarito ou com a correção da prova justifica uma ação judicial. O controle jurisdicional é um remédio de uso excepcional, cabível apenas quando houver violação clara e incontestável ao ordenamento jurídico.
Buscar a anulação de uma questão com base apenas em interpretações alternativas, sem a demonstração de erro grosseiro ou ilegalidade, significa ignorar o papel limitado do Judiciário e pode até resultar em frustrações adicionais.
Em suma, a interferência do Poder Judiciário nos concursos públicos é possível, mas restrita. O equilíbrio alcançado pelo entendimento dos Tribunais pátrios visa proteger tanto o direito dos candidatos quanto a autonomia administrativa das bancas. Trata-se de uma solução que prestigia a legalidade, resguarda a isonomia e, ao mesmo tempo, evita a judicialização excessiva dos certames. Afinal, o concurso público deve continuar sendo sinônimo de previsibilidade, mérito e segurança, valores que só se consolidam quando cada poder exerce sua função nos limites constitucionais estabelecidos.
*Otávio Gomides Monteiro é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Advogado do Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi (GMPR) Advogados. Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás em parceria com a ESA-GO. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-GO. Contato: otaviomonteiro@gmpr.com.br
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