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Novos capítulos da transferência interestadual de gado sem o pagamento de ICMS

É conhecida a tese jurídica que busca garantir aos produtores rurais o direito de transferir animais entre suas fazendas sem o pagamento de ICMS, ainda que as fazendas se encontrem em diferentes Estados.


A discussão é antiga. Ao longo dos anos, veio se formando na jurisprudência um cenário favorável aos produtores, ancorado principalmente na súmula n° 166 do Superior Tribunal de Justiça, a qual dispõe que “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de Mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”, publicada aos 23 de agosto de 1996.


Mesmo diante dessa antiga súmula, os Estados continuaram a exigir o pagamento de ICMS nessas operações de mera transferência, sob os mais diversos argumentos, gerando assim uma inegável insegurança jurídica.


Diante dessa resistência dos entes públicos, coube ao Supremo Tribunal Federal pacificar a questão.


Aos 15 de agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal realizou o julgamento, com repercussão geral, do ARE n° 1.255.885, no qual os Ministros ratificaram o entendimento favorável aos contribuintes de que que “o tributo apenas incide nos casos em que a circulação de mercadoria configurar ato mercantil ou transferência da titularidade do bem”.


E, aos 19 de abril de 2021, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADC n° 49, no qual se declarou a inconstitucionalidade dos artigos da Lei Complementar Federal n° 87/96 (Lei Kandir) que permitiam a cobrança de ICMS nas operações destinadas a outro estabelecimento do mesmo titular.


Diante desses dois julgamentos, que finalmente decidiram por definitivo o tema, esperava-se que os produtores rurais finalmente pudessem gozar de segurança jurídica nas transferências interestaduais de gado entre suas fazendas, sem que para tanto fosse necessário o pagamento de ICMS.


Mas, como no Brasil não há paz para o contribuinte, eis que os Estados encontraram meios de contornar esse direito constitucional de não pagar ICMS em meras transferências.


Como exemplo disso, serão abordados adiante dois cenários jurídicos, um relativo aos produtores situados no Estado de Goiás e outro relativo aos produtores que se encontram no Estado de Mato Grosso do Sul.


No âmbito do Estado de Goiás, foi editado o Decreto Estadual n° 9.478/19, o qual acrescentou ao artigo 6°, inciso XLIII, do Anexo IX do Regulamento do Código Tributário Estadual de Goiás, uma alínea “a” e os itens “1” e “2”.


O dispositivo em questão pode ser compreendido da seguinte maneira: são isentas de ICMS (Art. 6°, caput) as saídas internas (dentro do território goiano) de gado bovino destinado a cria, recria ou engorda, realizada entre produtores agropecuários (inciso XLIII). É dizer: ao se realizar a venda, dentro do território goiano, de gado bovino destinado a cria, recria ou engorda, a outro produtor agropecuário, o vendedor não deverá pagar ICMS em tal venda.


Entretanto, segundo a inédita “alínea a”, o ICMS que o vendedor deixou de pagar na venda deverá ser pago pelo adquirente que, subsequentemente, realizar qualquer saída do gado sem que este tenha sido objeto de cria, recria ou engorda em seu estabelecimento (item 1 da alínea “a”), ou que realizar saída em transferência interestadual (item 2 da alínea “a”).


Significa afirmar, com outras palavras, que se o adquirente de gado bovino realizar, após a compra, saída interestadual do gado bovino (ainda que em mera transferência), ficará o adquirente responsável pelo pagamento do ICMS que deixou de ser pago, em virtude de isenção, pela pessoa que lhe vendeu o gado.


Veja-se, assim, que o Estado de Goiás, impedido de cobrar ICMS nas transferências de gado sem alteração de titularidade, decide por cobrá-lo de maneira reflexa, através de verdadeira substituição tributária “para trás” – afinal, o adquirente, na qualidade de responsável, está sendo obrigado a recolher ICMS incidente sobre saída realizada anteriormente por outro contribuinte, qual seja, a pessoa que lhe vendeu o gado.


Ocorre que a cobrança de ICMS levada a efeito pelo Decreto n° 9.478/19 é notadamente inconstitucional.


O referido Decreto fere dispositivos constitucionais basilares relacionados à legalidade tributária, uma vez que tratou de substituição tributária “para trás” por meio de decreto; às anterioridades anual e nonagesimal, tendo em vista a instituição/aumento de tributo e cobrança no mesmo exercício e antes de decorridos noventa dias; e à não-cumulatividade, tendo em vista que o ICMS pago pelo adquirente, em cumprimento ao Decreto, não poderá ser compensado com outras operações.


Quanto ao Estado de Mato Grosso do Sul, a estratégia adotada para retaliar os produtores rurais foi um tanto parecida. O seu início se deu com a publicação do Decreto Estadual n° 15.588/2021, o qual acrescentou o artigo 4º-B ao Decreto Estadual n° 12.056/06 (que dispõe sobre o tratamento tributário dispensado às operações com gado etc.).


Segundo o disposto nesse novo artigo 4°-B, o diferimento do pagamento do ICMS para as operações internas com gado bovino ou bufalino não se aplica quando o estabelecimento destinatário, inclusive agropecuário, for beneficiário de decisão judicial que o desobrigue de recolher ICMS sobre operação posterior de saída interestadual do gado ou dos produtos de seu abate.


Significa dizer que, se o comprador for beneficiário de decisão judicial que o desobrigue de pagar ICMS nas transferências de gado, todo aquele que lhe fornecer gado deverá recolher ICMS (e outras contribuições) sobre o valor da venda. Isso não acontece com relação aos demais produtores que não têm decisão judicial a seu favor, os quais podem livremente comprar animais sem essa carga tributária adicional; isto é, com o diferimento.


relação aos produtores rurais que acionaram o Poder Judiciário e garantiram um direito previsto na Constituição Federal (de não pagar ICMS nas transferências interestaduais de gado), obrigando-os a pagar tributos em todas as compras que fizerem, o que não acontece com os demais produtores.


Essa iniciativa do ente público fere o artigo 150, inciso II da Constituição Federal, o qual dispõe ser vedado aos Estados instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente; e fere, ainda, o artigo 152 da Constituição Federal, o qual prevê que é vedado aos Estados estabelecer diferença tributária entre bens (aqui, gado) em razão de sua procedência ou destino.


No fim das contas, o que se vê é que os contribuintes, ainda que vitoriosos em uma antiga discussão jurídica, não têm paz; pelo contrário, são agora conduzidos mais uma vez ao Poder Judiciário, a fim de dar início a novas batalhas contra a incansável Fazenda Pública, relativas a uma mesma exação tributária (ICMS em transferências de gado) – que, em vão, pensavam ter sido encerrada.

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