1 – O caráter personalíssimo do status socci em Sociedades Limitadas
Imagine que você e dois amigos decidem abrir uma pequena cafeteria, cada um trazendo não só capital, mas também habilidades únicas ao empreendimento. Sua decisão de abrir o negócio, em sociedade, pressupôs uma relação de confiança com seus amigos, agora sócios. Existe, portanto, entre vocês uma afeição mútua de serem sócios de um novo negócio, o que o Direito Societário conceitua por Affectio Societatis.
Nesta cafeteria os sócios possuem nome, rosto e identificação clara. Não são apenas cifrões de reais colocados à mesa para início de um negócio. Possivelmente por isso vocês constituirão, formalmente, uma sociedade de responsabilidade limitada (LTDA), tipo societário mais adotado no Brasil, na qual a escolha dos sócios, em regra, é um processo cuidadoso que valoriza a confiança, as competências e as relações pessoais.
2 – E se um dos amigos decidir vender sua respectiva participação na cafeteria?
Há, portanto, uma presunção legal de que em LTDA’s a condição de sócio tem um caráter personalíssimo. Ou seja: é uma sociedade de pessoas, cujo vínculo originário societário constituiu-se por um acordo recíproco de confiança pessoal.
A lei, no entanto, expressamente possibilita aos sócios afastarem essa presunção de pessoalidade em seus contratos sociais e acordos societários, prevendo regras que minimizem ou até exterminem as amarras legais destinadas a preservar a pessoalidade.
Não é, porém, o caso de sua cafeteria. Você e seus sócios não previram regras que eliminassem a pessoalidade societária de vocês. Os sócios da cafeteria possuem nomes e CPF’s claros.
Só que, passado um tempo, um dos sócios deseja vender sua participação no negócio, o que não estava previsto nos atos societários originários. O que diz a lei, neste silêncio?
A lei, como antecipado, enfatiza o caráter personalíssimo dessas sociedades ao exigir que qualquer cessão de quotas a terceiros seja condicionada à aprovação dos demais sócios que representem parcela significativa do negócio. Medida essa que assegura, ou ao menos tenta assegurar, participação ativa na escolha de novos integrantes, preservando assim a integridade e os propósitos originários da empresa.
Para sermos mais precisos, o artigo 1.057 do Código Civil prevê que na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.
Se um dos sócios remanescentes quiser comprar as quotas, desse modo, não há que se colher a anuência dos demais. Por razões claras: se ele já é sócio, a afeição societária já lhe foi chancelada. Se, no entanto, a intenção é vender a terceiro estranho à sociedade, os demais sócios precisam ser comunicados e a afeição societária com este terceiro precisa ser chancelada por pelo menos 75% (setenta e cinco por cento) do capital social.
Quando um sócio, assim, opta por vender diretamente as quotas da empresa, o processo é projetado para ser transparente, proporcionando visibilidade em cada etapa. Esta transparência busca não apenas facilitar a governança, mas também agilizar a resolução de possíveis disputas ou desafios que possam surgir.
3 – A “evolução” societária da cafeteria
Conversando com vocês, seu amigo mudou de ideia. Os três continuam, portanto, firmes no projeto empresarial. Renovada a confiança recíproca, vocês conversam com o advogado da empresa e este lhes convence a reestruturar a empresa societariamente. Apresenta um estudo a vocês de que se cada um constituir uma Holding, para que estas sejam as sócias da cafeteria, teriam um ganho.
No caso do negócio de vocês, tributariamente seria mais vantajoso, haveria uma melhor organização patrimonial entre empresa e pessoa física, além de proporcionar uma melhor estruturação de governança e sucessão entre os núcleos familiares.
Decidem, então, promover a reestruturação.
Nesse contexto, aquela cafeteria que começou como um simples negócio entre amigos, agora passa a ser parte de uma estrutura mais complexa. Tal mudança, enraizada em necessidades práticas, pode alterar significativamente a dinâmica e o controle do negócio original, desafiando a gestão e a visão dos fundadores. Ainda que boa, precisa ser bem e meticulosamente conduzida.
4 – Seu amigo, titular das quotas da Holding dele, pode ceder as quotas internas da Holding dele a terceiros?
Mais um tempo se passa e a ideia do seu amigo de vender sua participação na empresa se reaviva. Agora, porém, a participação da empresa é de uma pessoa jurídica, uma Holding. Seu amigo possui, na verdade, 100% (cem por cento) das quotas da Holding dele. Se a Holding quiser vender suas quotas, portanto, a regra continua a mesma.
Mas seu amigo, sabendo que os demais representantes das outras Holdings não aceitariam a venda, percebe um caminho: ele não possui sócios na Holding dele. Tendo, portanto, 100% (cem por cento) das quotas da Holding, ele poderia vender não as quotas que a Holding tem na cafeteria, mas, sim, as quotas que ele possui na Holding.
Faria, assim, uma cessão indireta das quotas da cafeteria, sem precisar da anuência dos demais representantes das outras Holdings (você e seu outro amigo).
Veja, portanto, que essa nova realidade transforma profundamente as expectativas de controle sobre a admissão de novos sócios, especialmente porque a empresa agora inclui sócias pessoas jurídicas. Com cada um dos amigos originais assumindo a propriedade de uma holding, cada sócio teria, em tese, autonomia para vender as quotas de sua respectiva pessoa jurídica sem a necessidade de aprovação dos demais.
Essa liberdade pode resultar na entrada de terceiros no negócio de maneira abrupta, possibilitando que influências externas desestabilizem ou transformem o caráter original da cafeteria, trazendo consequências potencialmente disruptivas.
Isso é válido?
Por um lado, reside o argumento de que, ao integralizar suas quotas em pessoas jurídicas, os sócios tinham, ou deveriam ter, conhecimento das regras societárias, de modo que sabiam, ou deveriam saber, que essa operação mitigaria a regra do art. 1.057 do Código Civil.
É como se a estruturação em Holdings despersonalizasse o status socci.
Por outro lado, no entanto, reside o argumento de que, comprovando-se que a sociedade, independentemente da reestruturação societária, permaneceu com caráter personalíssimo, a cessão indireta de quotas também se submeteria à regra do art. 1.057 do Código Civil.
É como se não houvesse um silêncio eloquente na legislação, mas sim uma aplicação analógica do artigo à situação, não passível de previsão à época da confecção da lei (já que tais estruturações societárias estão mais comuns em anos recentes).
Fato é que este tema já está sendo analisado pelo Judiciário e há decisões contundentes neste último sentido. A Justiça tem anulado cessões indiretas que não observaram o art. 1.057 do Código Civil e, com mais razão, tem reconhecido que tal conduta configura falta grave societária a justificar a exclusão da Holding que cedeu sorrateiramente suas quotas internas em sociedades personalíssimas.
Tais decisões, independentemente das compreensões intelectuais de cada um, devem servir de alerta para os sócios e advogados que confeccionam planejamentos societários, para que, quando da integralização das quotas em pessoas jurídicas, concomitantemente já prevejam regras a serem observadas quando de eventuais cessões indiretas das quotas das Holdings que serão sócias da empresa operacional.
Cuide bem de sua cafeteria!
*Leonardo Honorato Costa – Master of Law em Direito Empresarial (FGV/RJ); MBA em Governança Corporativa e Compliance (FGV/RJ); membro efetivo da Comissão de Conflitos Societários do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (IBRADEMP); árbitro de Conflitos Societários na CAMES e ACIEG; co-autor do livro Direito Empresarial: novos enunciados da Justiça Federal; e membro fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG). Formação em Gestão pelo G4 Educação; Equity+; e Escola de Formação Clássica
*Enzo Pereira Araujo Resende – Master of Law em Direito Empresarial (FGV/RJ); membro da Comissão de Direito Empresarial (OAB/GO); professor de Direito Empresarial em cursos de graduação; professor de Direito Processual Civil em cursos de graduação; bacharel em Direito (UFG).
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