A promulgação das legislações agrárias durante o regime militar se insere em um contexto de profundas transformações socioeconômicas e políticas no país. Período marcado por uma forte intervenção estatal na economia, com o objetivo de promover o desenvolvimento de diversas regiões estratégias para o país.
Àquela altura, o Brasil era um país com enorme concentração latifundiária, com uma péssima distribuição e ocupação de terras dentro do território nacional, configuração que impedia o cumprimento satisfatório do potencial produtivo da propriedade rural e, consequentemente, do progresso econômico do Brasil.
A intenção era que as novas leis, tais como a Lei 4504/1964 (Estatuto da Terra) e o Decreto 59.566/1966, que ora estabeleceram diretrizes a respeito do uso das propriedades, tornassem os imóveis mais produtivos e eficientes, impulsionando o crescimento econômico, aumentando a produção de alimentos e matérias-primas para exportação.
Fato é que, à época, a relação fundiária “proprietário x possuidor” era caracterizada por uma assimetria econômica característica. O poder econômico do proprietário era reforçado pela concentração fundiária, pelos meios de produção, bem como pela apatia em realizar investimentos em tecnologia, produtividade; enquanto os possuidores, em suas diversas modalidades, forneciam o trabalho, propriamente dito, e, em especial, a disposição para trabalhar a terra.
De tal modo, a legislação à época estabelecia mecanismos que visavam garantir condições justas de arrendamento e, em especial, de parceria rural, condicionando o uso da terra à sua função social e produtiva, e, ainda, evitando eventuais arbitrariedades pelos proprietários.
Hoje, o contexto mudou. A legislação, contudo, segue a mesma.
Com o agronegócio em escala internacional, gigantescas empresas se estabeleceram na figura do possuidor, utilizando-se de vastas extensões de terra para a produção de commodities, sem guardar qualquer vínculo de propriedade com os imóveis produtivos.
Em suma, o arrendamento de terras permite às referidas empresas expandir ou reduzir áreas de cultivo conforme as demandas de mercado, bem como se instalar em diferentes regiões produtivas, aproveitando condições climáticas e logísticas favoráveis, além de direcionar os investimentos em tecnologia e produção; isto sem imobilizar capital na compra de terras, bem como suportar os custos e complexidades associados à aquisição de bem imóvel.
Tais fatos as diferenciam – e muito – dos possuidores “tradicionais”, concebidos à época da publicação da legislação agrária.
Certo é que a letra da lei sessentista não contempla as complexidades da estrutura agrária atual, indicando a necessária aplicação mais criteriosa da letra da lei para regular eficazmente as novas dinâmicas.
Fala-se, a título de exemplo, (i) dos requisitos formais previstos na legislação agrária para a retomada do imóvel e o prazo objetivo de seis meses de antecedência para retomada do imóvel, que, muitas vezes, por desconhecimento, acabam por frustrar produtores na retomada das suas propriedades; (ii) dos prazos de duração inflexíveis previstos para algumas modalidades de arrendamento e parceria, que, diversas vezes, são utilizados de má-fé por arrendatários apenas para formalização do vínculo contratual; (iii) da vasta complexidade de contratos agrários como, por exemplo, os contratos de parceria agrícola e fornecimento de cana firmados pelas Usinas de Açúcar e Álcool com os produtores rurais, que trazem previsões extremamente técnicas, como o ART Relativo para composição do preço de pagamento pela tonelada entregue de produto; (iv) ou mesmo a especificidade de certas cadeias agroindustriais, como a cadeia de proteína animal por meio de contratos de integração.
A verdade é que para lidar com a complexidade do direito agrário, em especial as questões que envolvem contratos específicos e o uso da terra, é fundamental estar acompanhado de uma boa assessoria jurídica, que esteja à par da legislação e dos novos precedentes.
E mais. Não só necessária a compreensão do caso concreto, mas fundamental a sua exegese ao magistrado. Isto é, vale considerar os atores envolvidos, o contexto social e econômico qual se desenvolveu a relação e até mesmo o que as partes esperavam obter com o negócio jurídico que ensejou a contenda.
Ao tratar o caso com uma visão mais holística, abre-se a oportunidade de repensar e, quem sabe, ajustar o arcabouço legal agrário, conectando-o à realidade atual. Equilibra-se, assim, os interesses das partes e atende-se às novas dinâmicas do setor, promovendo-se uma justiça mais alinhada às transformações socioeconômicas do campo.
Artigo escrito por: Francisco Haick Mallard Fonseca, Advogado atuante na área do Direito Agrário e do Agronegócio no Escritório GMPR Advogados.
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