Com o advento da bioética na seara Médica e da Saúde, passou-se a tratar de forma mais aprofundada acerca da interligação entre a ética, moral, valores, princípios jurídicos e os comportamentos profissionais médicos e dos próprios pacientes.
Nesse contexto, surgiram os princípios regentes da relação médico-paciente pautados na autonomia, não maleficência, beneficência e equidade. Isso posto, o presente artigo cumpre tratar especificamente do preceito da autonomia privada, o qual vem, cada vez mais, ganhando destaque nos debates jurídicos e contemporâneos.
O Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, inciso XXI[1], dispõe acerca da necessidade de se respeitar a autonomia do paciente quanto aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem realizados.
Dessa forma, percebe-se que o princípio da autonomia privada consiste na ideia da maior participação do paciente nas decisões que envolvem a saúde de seu corpo e alma e, portanto, na dúvida, deve-se prevalecer a vontade desse.
Contudo, por diversas ocasiões, observa-se que a autonomia privada do paciente – preponderante nessa relação médico-paciente – esbarra nos conceitos clínicos, literários e até éticos, morais e religiosos do profissional da Medicina.
Diante desse conflito de interesses, a relação entre o Médico e o paciente deve ser regida com ética, confiança e reciprocidade, na qual ambas as partes devem agir de forma moralmente indicada para que se possa chegar a uma consulta efetiva, tratamento digno e resultado esperado, os quais perfazem o objetivo comum.
Todavia, nos casos em que essa relação de confiança é quebrada por parte do paciente, nasce ao Médico, por meio do princípio da autonomia médica, prevista no Código de ética Médica, Capítulo I, incisos VII e VIII[2], a prerrogativa pessoal de encerrá-la e renunciar ao atendimento, ressalvada a vedação de abandono do paciente, prevista no artigo n. 36 do Código de Ética Médica[3].
Além disso, observa-se também a autonomia médica no conceito da objeção de consciência, que reconhece o direito dos profissionais da Medicina de se recusarem a participar de procedimentos médicos ou tratamentos que entrem em conflito com suas convicções morais, éticas ou religiosas.
O respectivo preceito foi legalmente reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, em sua resolução n. 2.232/2019, artigo n. 8º: “Objeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.”
Embora o direito à objeção de consciência seja amplamente reconhecido, sua aplicação não é ilimitada – isso porque, não pode ser utilizado como justificativa para negar aos pacientes o acesso a serviços médicos legalmente permitidos e, portanto, os profissionais que se recusarem a realizar determinados procedimentos devem garantir que os pacientes sejam encaminhados a outros profissionais ou serviços onde possam receber o tratamento necessário.
Outrossim, a objeção de consciência não exime os Médicos de suas responsabilidades éticas e legais perante os pacientes. Isso posto, ao se recusarem a participar de determinados procedimentos, os Médicos devem assegurar que os pacientes sejam informados sobre suas opções de tratamento e que recebam o apoio necessário para tomar decisões conscientes acerca da sua saúde.
Ademais, convém destacar que a autonomia médica (tanto pela quebra de confiança, quanto pela objeção de consciência) terá natural limitação nos casos de urgência e emergência, nas quais o Médico não poderá renunciar ao atendimento, ressalvado o seu direito de decidir pelo melhor tratamento a ser ministrado ao paciente.
Pelo exposto, conclui-se que o princípio da autonomia privada levanta uma série de questões legais e sociais que precisam ser cuidadosamente consideradas. Por um lado, é essencial garantir que os direitos dos profissionais da Medicina sejam respeitados, de modo a proteger a sua liberdade de consciência e evitar que sejam coagidos a agir contra suas convicções pessoais.
Por outro lado, é igualmente importante salvaguardar o direito dos pacientes a receberem cuidados médicos adequados e oportunos, sem discriminação ou obstáculos injustificados. Nesse sentido, os ambientes de saúde devem adotar medidas que conciliem os interesses dos Médicos com os direitos dos pacientes, garantindo que a autonomia privada não resulte em prejuízos para a qualidade e acessibilidade dos serviços de saúde.
Por fim, conclui-se que a autonomia médica é um reflexo dos conflitos éticos inerentes à prática da medicina, exigindo um equilíbrio delicado entre valores individuais e responsabilidades profissionais. Ao reconhecer e abordar esses conflitos de maneira ética e legalmente fundamentada, é possível promover um ambiente de respeito mútuo e colaboração entre profissionais de saúde e pacientes, garantindo que ambos sejam tratados com dignidade e compreensão.
[1] XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
[2] VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.
[3] Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.
*Letícia Lopes Auad é pós-graduada Lato Sensu pelo Instituto Goiano de Direito em Direito Médico, Odontológico e da Saúde; Sócia do escritório GMPR Advogados; Vice-Presidente Jovem da Comissão de Direito da Saúde da OAB/GO.
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