Introduzindo o tema: a Baixa Irregular de Empresas
Há um alarmante dado no cenário econômico sobre o qual a legislação ainda não se debruça com a profundidade que a relevância do tema exige: grande parte das empresas brasileiras encerram suas atividades de modo irregular. As consequências desta omissão legislativa são incontáveis. Nos ateremos, porém, naquela de maior impacto ao mercado: a insegurança e o desamparo dos credores destas empresas quanto ao recebimento de seus créditos.
Pois bem. A legislação preocupou-se em estabelecer regras para a baixa regular de uma empresa, mas, ingenuamente, olvidou-se de estabelece-las de modo mais claro para os casos de baixas irregulares – que, na prática, talvez sejam maioria.
De fato, a questão está bem colocada, na legislação, quando se trata de uma baixa regular: após quaisquer das causas de dissolução da sociedade (art. 1.033 do CC), a sociedade entrará em fase de liquidação (art. 1.102 do CC), momento em que ou se promoverá a sua extinção (art. 1.109 do CC), caso não subsistam credores a serem saldados, ou, caso haja e o patrimônio seja insuficiente, será confessada a falência da empresa (art. 1.103, VII, do CC).
A celeuma, entrementes, instaura-se pelo fato de que, na prática, é possível que uma empresa promova a sua dissolução, liquidação e extinção de modo absolutamente extrajudicial, por meio de “Distrato” na Junta Comercial, sem pagamento das dívidas sociais e sem a necessária confissão de falência, quando impossível o pagamento do passivo.
Resultado: uma posterior dificuldade dos credores em receber seus créditos, uma vez que, com a baixa irregular, o CNPJ em questão não terá qualquer patrimônio para saldar suas dívidas.
Surge, nesse ponto, a problemática: quais as consequências de quem promove tal baixa irregular? A resposta, infelizmente, não emana diretamente da lei, de modo que o Poder Judiciário tem se divergido quanto ao tema, gerando uma indesejável insegurança aos credores.
As consequências da Baixa Irregular:
Fato é que, desinteressados quanto ao extinto CNPJ, resta aos credores intentarem suas forças em face dos ex-sócios, potencialmente beneficiados com a baixa irregular. Caso estes tenham percebido formalmente qualquer soma durante a liquidação, dos males o menor, pois aqueles podem exigir a responsabilização destes até o montante que tenham recebido (art. 1.110 do CC).
Não raro, porém, formalmente não há qualquer partilha de acervo, de modo que remanesce a dúvida: os sócios responderão com seu patrimônio pelas dívidas não observadas quando da liquidação irregular? Essa a resposta cujos entendimentos se divergem com maior intensidade.
O TJDFT, por exemplo, cravou entendimento no Agravo nº 0719393-68.2018.8.07.0000 de que “por ter sido a obrigação contraída pela pessoa jurídica, tem-se que a execução só pode ser ajuizada em seu desfavor e o meio de atingir o patrimônio dos sócios é a desconsideração da personalidade jurídica, ainda que o fundamento jurídico seja a liquidação irregular”.
Ou seja: o credor precisaria promover o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 do CPC) para alcançar o patrimônio dos ex-sócios, em caso de extinção irregular da empresa. Qual a incongruência deste entendimento? Com as devidas vênias, a extinção da empresa importou na perda de sua personalidade jurídica, de modo que não há mais o que se desconsiderar!
Sem contar que essa exigência impingiria o credor a submeter-se a um desnecessário procedimento judicial, uma vez que a baixa irregular, como o próprio nome induz, configura, para parcela da doutrina, uma deliberação infringente da lei, tornando ilimitada a responsabilidade dos que expressamente a aprovaram (art. 1.080 do CC).
Como, então, incluir os ex-sócios na demanda?
O TJSP, no Agravo nº 2227670-68.2018.8.26.0000, exemplifica adequadamente a segunda corrente de entendimento: “(…) extinta a empresa executada, não se trata a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica. A extinção da personalidade jurídica equivale a morte da pessoa natural, de modo que se revela perfeitamente aplicável o instituto da sucessão processual previsto no artigo 110 do CPC, por analogia.”
Quer dizer: no caso de baixa irregular, a parte deverá requerer a Habilitação dos ex-sócios, sob o fundamento da extinção da empresa e a sua responsabilidade ilimitada (art. 1.080 do CPC).
Essa é, talvez, a solução atual mais coerente, a partir do que temos de legislação sobre o caso. Uma aplicação analógica, porém, não está à altura da importância e recorrência do tema, de modo que mereceria um tratamento legislativo mais aprofundado, pois não resolve todas as celeumas do assunto.
A inaptidão por omissão de declarações e a Baixa Irregular:
Uma questão adicional que se interliga com o tema diz respeito à inaptidão do CNPJ por omissão e atraso nas obrigações acessórias de entregar à Receita Federal declarações, demonstrativos e escriturações fiscais. O atraso superior a 90 (noventa) dias na entrega de tais documentações pode acarretar a declaração de “inaptidão” da inscrição do respectivo CNPJ.
Este atraso produz algumas consequências previstas na Legislação, entre as quais: a) os sócios do CNPJ inapto não poderão abrir novo CNPJ; b) o CNPJ poderá ser baixado de ofício se a inaptidão não for regularizada em 180 (cento e oitenta) dias da declaração de inaptidão; c) o CNPJ não poderá transacionar com o Poder Público ou com Bancos, inclusive quanto à movimentação de contas-correntes; d) os documentos fiscais serão considerados nulos ou inidôneos; e) os sócios poderão ser responsabilizados por dívidas do CNPJ.
Neste último ponto a conexão supramencionada: a inaptidão por omissões nas declarações configura “Baixa Irregular” da empresa?
Independente do argumento técnico, fato é que, para o Fisco, a resposta é afirmativa e está sendo aplicada independentemente de Incidente de Desconsideração ou de Habilitação.
A Fazenda tem instaurado, de ofício, Procedimento Administrativo de Reconhecimento de Responsabilidade (PARR) entendendo que a inaptidão configura indícios da ocorrência de dissolução irregular e, por tal motivo, responsabilizando os sócios por dívidas tributárias sem necessidade, repita-se, de processo judicial.
Os argumentos seriam os artigos 135, III, do CTN, 4º, § 2º, da Lei nº 6.830/80, 20-D, III, da Lei n. 10.522/2022 e Portaria PGFN n. 948/2017.
Nas dívidas privadas, a Justiça tem exigido que o tema seja objeto de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, já que o CNPJ inapto não foi baixado, e as decisões mais recentes caminham no sentido de que tal inaptidão, por si só, não configuraria um abuso de personalidade hábil a desconsiderar a personalidade jurídica da empresa.
Cito como exemplo o Agravo de Instrumento n. 5387237-26.2023.8.09.0051, julgado pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
Neste acórdão, entendeu o Tribunal que “o fato da empresa constar INAPTA perante a receita federal não presume que houve o encerramento de suas atividades, tampouco que deixou de faturar” (…) “a situação de um CNPJ como ‘inapta’ pela Receita Federal, traduz-se no motivo de que a empresa deixou de cumprir as obrigações fiscais, com a entrega de declarações, bastando, para sanar o vício de omissão, que o contribuinte promova a entrega de declarações dos últimos 5 (cinco) anos, sendo isso insuficiente para comprovar o encerramento irregular das atividades da empresa recorrida”.
Conclusão:
O tema “Baixa Irregular” de empresas ainda carece de melhor aprofundamento legislativo. Até lá, no entanto, a recomendação, aos empresários, é que tenham diligência no fechamento de suas portas e no atendimento das obrigações acessórias.
Aos credores, resta ter atenção ao desenvolvimento jurisprudencial do tema, para que não promovam andamentos processuais inadequados e sejam mais assertivos na busca de satisfação de seus créditos.
*Leonardo Honorato Costa é Master of Law em Direito Empresarial (FGV); MBA em Governança Corporativa e Compliance (FGV); Membro efetivo da Comissão de Conflitos Societários do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (IBRADEMP); Árbitro de Conflitos Societários na CAMES e ACIEG; Co-autor do livro Direito Empresarial: novos enunciados da Justiça Federal; – Membro fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG). Formação em Gestão pelo G4 Educação; Equity+; e Escola de Formação Clássica.
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