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Aspectos da aquisição irregular de imóveis e a usucapião como instrumento convalescente

Atualizado: 13 de jun.

Em 2023, o jornal Folha de São Paulo divulgou que aproximadamente 60% dos imóveis no

Brasil apresentam irregularidades – a mais comum é a falta de escritura –, dado este

apurado pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Trata-se de

estatística alarmante, uma vez que mais da metade dos imóveis do país não possui registro

atualizado a respeito de (i) quem seja o proprietário e (ii) de operações que envolvam esses

bens (compra e venda, doação, cessão de direitos, permuta etc.). Há, inclusive, imóveis

que nem sequer possuem registro.


Uma das justificativas desse fenômeno é a aquisição irregular de imóveis (urbanos e rurais)

por meio dos afamados “contratos de gaveta”: pelo instrumento particular, vendedor e

comprador acreditam ter formalizado o negócio jurídico, e deixam o documento

“engavetado”, sem dar-lhe a publicidade que o instituto jurídico da propriedade – na

qualidade de direito real oponível erga omnes – exige.


Seja pela desinformação, seja pela descrença em lidar com burocracias, fato é que muitas

pessoas adquirem imóveis sem observar: se ele possui registro; caso possua, se a área

delimitada está correta; se o vendedor é de fato proprietário e possui legitimidade para

dispor do bem; a necessidade de lavrar escritura pública caso o valor do imóvel supere

trinta salários-mínimos; e a essencialidade de registrar na matrícula do imóvel a operação

realizada, em conformidade ao artigo 1.245 do Código Civil (a máxima “só é dono quem

registra” nos ensina).


É inegável, porém, que os emolumentos cartorários e impostos como o ITBI e ITCMD

traduzem elevada despesa, situação que torna a aquisição irregular mais atrativa, tanto

pela menor onerosidade, como pela sua simplicidade.


Todavia, esses atributos mascaram graves riscos.


O principal está relacionado aos credores do proprietário formal na matrícula do imóvel —

quando este vende o bem a um terceiro via contrato de gaveta —, que poderão, mediante

processo judicial, penhorar o imóvel, e até levá-lo a hasta pública. Outro risco a ser citado

é de o proprietário formal na matrícula do imóvel, imbuído de má-fé, transferir o bem a

terceiro quando outro alguém já havia adquirido-o anteriormente, ainda que irregularmente.

O “cardápio” de problemas que a irregularidade no registro dos imóveis traz é infindável.

Uma das soluções é, sem dúvidas, lavrar escritura pública de compra e venda do bem que

está sendo adquirido (nas ocasiões descritas pelo artigo 108 do Código Civil) com o

proprietário, e levá-la a registro no cartório competente. Todavia, essa saída não pode

atender a todos, pois há situações em que: o proprietário é desconhecido ou já faleceu; o

imóvel foi adquirido de pessoa jurídica agora extinta; houve perda ou extravio do contrato

de compra e venda particular; entre inúmeras outras intercorrências.


Nessas ocasiões em que o registro da propriedade seja inviabilizado, e a insuficiência de

provas hábeis a comprovar a aquisição do imóvel seja empecilho até mesmo para o

ajuizamento de adjudicação compulsória, o processo de usucapião pode ser via utilitária.

Foi o que entendeu, recentemente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no julgamento

da Apelação autuada sob o n. 5001268-92.2020.8.24.0055, publicado em 22/02/2024.


No caso posto sob julgamento, a autora da ação, no ano de 2000, adquiriu imóvel por meio

de contrato particular de compra e venda firmado com os proprietários do bem, que não foi

levado a registro à época. Anos após, o contrato e os comprovantes de pagamento foram

perdidos durante as diversas enchentes ocorridas na região, de sorte que não restou a

autora alternativa senão utilizar-se da usucapião para adquirir a propriedade do imóvel e,

por conseguinte, regularizá-lo.


O acórdão do TJSC explica que, embora a jurisprudência “entende ser incabível o manejo

de ação de usucapião quando o contexto fático ensejador da demanda estiver amparado

por compromisso/contrato de compra e venda”, a autora da ação comprovou cumprir os

pressupostos para usucapião, quais sejam: posse ininterrupta, mansa, pacífica e sem

oposição; com intenção de dono; exercida em tempo superior ao mínimo previsto na lei.

Em arremate, o aresto conclui que os “tribunais mais recentemente têm flexibilizado essa

inviabilidade quando a almejada usucapião [...] fundamentar-se na dificuldade de

regularização da questão pela via administrativa”.


Para além da ausência de documento hábil que dificulte a transferência da propriedade pela

via administrativa; outra celeuma enfrentada é a inexistência de matrícula do imóvel

adquirido, ou quando o bem integra uma área maior já inserida noutra matrícula. Aqui, a

usucapião também revela-se útil, pois a sentença proferida em favor do usucapiente é

ferramenta eficaz para abertura de nova matrícula junto ao cartório competente.


Conclui-se, desse modo, que a regularização de imóveis no país é medida que urge, pois

inúmeros são seus benefícios. Cita-se, por exemplo: a) maior seguridade jurídica aos

proprietários; b) redução de eventuais litígios; c) evita-se a desvalorização do imóvel; d)

estímulo de práticas sustentáveis e investimentos a longo prazo, que contribuem para o

desenvolvimento econômico da região; e) no caso dos imóveis rurais, reduzem-se os

conflitos fundiários (comumente violentos) e amplia-se a possibilidade de acesso a crédito

agrícola; entre outros.


A usucapião, como visto, revela-se como instrumento vital para a regularização da

propriedade, sobretudo àqueles que não conseguem promover o registro da transferência

do imóvel na matrícula do bem. Todavia, a eficácia dessa estratégia depende, sobretudo,

do competente apoio jurídico, razão pela qual o advogado de sua confiança deve ser

consultado.


REFERÊNCIAS: BRANCO, Ana Paula. Falta de escritura atinge mais de 40 milhões de imóveis; veja o que fazer. Folha de São Paulo, 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/07/falta-de-escritura-atinge-mais-de-40-milhoes-de-imoveis-veja-o-que-fazer.shtml. Acesso em 1 jun. 2024.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil, 22. ed., 2007, vol. 4º.

MELO, M. A. B; PORTO, J. R. M. Posse e Usucapião: direito material e direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

 

*Ana Paula Dias Ribeiro é advogada associada ao GMPR Advogados, com atuação no contencioso cível, especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil.


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