Segundo pesquisa apresentada em setembro de 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ[i] tramitam atualmente no Brasil mais de 75 milhões de processos judiciais, dirigidos por cerca de 18 mil magistrados. Os números hiperbólicos do judiciário brasileiro acabaram por provocar um índice de congestionamento que ultrapassa os 50%.
Considerando a absoluta incompatibilidade entre o número de processos judiciais em andamento e a quantidade de magistrados os conduzindo mostra-se indispensável e urgente a adoção de mecanismos que contribuam para maior eficiência do sistema de justiça.
No panorama de atribuição de maior efetividade ao Poder Judiciário ganhou destaque a busca de inspiração na experiência de outras jurisdições, sobretudo da common law, com a introdução de mecanismos de justiça penal negociada similares ao plea bargain norte americano.
Dentre esses institutos o acordo de não persecução penal trazido ao nosso ordenamento pela Lei nº 13.964/19 trouxe alternativa do Acordo de não Persecução Penal para resolução célere de imputações criminais de menor gravidade, privilegiando a reparação do dano decorrente do ilícito penal.
Nesse contexto os crimes contra a ordem tributária se adequariam a ideia do legislador de solução penal negociada. No entanto, as infrações penais dessa natureza têm característica peculiar, exigindo, para sua tipificação, a apuração definitiva com a consolidação do ilícito fiscal na esfera administrativa.
Ocorre que, no curso de uma fiscalização tributária podem ser lavrados diversos autos de infração, referentes a ilícitos distintos, mas ocorridos um mesmo contexto de tempo, lugar, modo de execução e outras similitudes. Com isso, é comum que em razão de uma mesma fiscalização se tenha autuações distintas, com procedimentos administrativos tributários de apuração definitiva com velocidade de tramitação e conclusão diversos. Isso faz como que notícias fiscais aportem ao Ministério Público já aptas à deflagração de ação penal, enquanto outros possíveis ilícitos, ocorridos no mesmo contexto, ainda estejam em discussão administrativa.
Tal circunstância enseja um dilema. O Acordo de não Persecução Penal – ANPP, por força da previsão do artigo 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal, não pode ser celebrado se o investigado tiver sido beneficiado por outra medida despenalizadora de mesma natureza nos 5 anos anteriores. Sendo assim, acaso formulado o acordo em relação a imputação de crime tributário relativo a ilícitos cujo débito já tenha se consolidado administrativamente em definitivo, não poderá o investigado formular novo acordo em relação aos ilícitos ainda em discussão na esfera administrativa, o que tornaria a celebração do primeiro acordo absolutamente desinteressante, seja do ponto de vista prático, seja do ponto de vista jurídico.
A solução para este dilema demanda a análise da natureza jurídica das soluções penais negociadas. Tal solução negocial, conforme a classificação de Pontes de Miranda[ii], se insere no rol dos “fatos jurídicos”, que se realizam mediante incidência de regra jurídica que o suporta, mas especificamente na espécie “negócio jurídico bilateral”, cuja efetivação irradia efeitos próprios no mundo jurídico – não oferecimento de denúncia pelo Ministério Público e assunção de obrigações pelo investigado, que se submete a “sanção sem processo, defesa ou produção de prova”[iii]. Trata-se, pois, de “acordo de vontades, que surge da participação humana e projeta efeitos desejados e criados por ela, tendo por fim a aquisição, modificação, transferência ou extinção de direitos”.[iv]
E, em que pese toda teoria dos atos, fatos e negócios jurídicos ter sido construída sob as bases e premissas direito privado, à míngua de uma teoria geral dos negócios jurídicos processuais penais[v] “o conceito de fato jurídico é uma temática não exclusiva do Direito Civil, pois se está tratando de um conceito jurídico direito fundamental”[vi], “abrangendo todos os quadrantes do ordenamento jurídico”[vii], devendo aqui se aplicar o chamado “diálogo das fontes”, com a “aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas”. [viii]
Ainda quanto a caracterização da natureza jurídica do acordo de não persecução penal destaque-se sua identidade com a “colaboração premiada” prevista na Lei nº 12.850/2013. Conquanto os institutos se alicercem em bases epistemológicas distintas[ix], com finalidades e efeitos diversos, a essência do negócio jurídico bilateral, com assunção mútua de obrigações e concessão de benefícios, circunstância reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 127.483/PR, leading case sobre os acordos de colaboração premiada e consagrada na atual redação do artigo 3º-A da Lei nº 12.850/13.
Considerando, pois, a natureza de negócio jurídico do acordo de não persecução penal não existe óbice, desde que respeitados os requisitos genéricos para sua existência, validade e eficácia, a inserção nas suas cláusulas da possibilidade celebração de termos aditivos ao “contrato” original entabulado.
Com efeito, “os contratos que têm trato sucessivo ou a termo ficam subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas”[x]. Sendo assim, a superveniência de novas notícias fiscais para fins penais se afigura como circunstância que altera a realidade jurídica do celebrante do acordo de não persecução, o que viabilizaria a negociação das cláusulas da avença, com a assunção de novas obrigações, mas manutenção da medida despenalizadora.
É certo, contudo, frente à necessidade de preservação da essência do negócio jurídico formulado, exista identidade factual e jurídica entre os ilícitos que já são objeto da avença e os que serão inseridos no aditivo.
A solução para identificação desta similitude factual e jurídica pode ser revelada com a aplicação dos mesmos critérios previstos para reconhecimento da continuidade delitiva, previstos no artigo 71 do Código Penal, cuja finalidade é “temperar o excesso decorrente da aplicação do princípio rígido da acumulação material de crimes”.[xi]
É necessário, pois, tratar-se de crimes da mesma espécie, ocorridos em um mesmo contexto de tempo, lugar, modo de execução, de forma que os novos ilícitos possam ser havidos como continuação daqueles já abrangidos no acordo de não persecução.
Nesse sentido, embora não se conheça precedente específico sobre a possibilidade, ou não, de aditamento ao acordo de não persecução, há no acervo do Supremo Tribunal Federal (HC nº142205/PR[xii]; Pet nº 6138/DF[xiii]) e Superior Tribunal de Justiça (Rcl nº 41759/RJ[xiv]) decisões, em que se discutiu ou se homologou cláusulas de aditivos em acordos de colaboração premiada, cuja natureza, como já destacado, é, como no acordo de não persecução penal, de negócio jurídico processual.
Dessa forma, ainda que o processo penal não se preste a resolver conflitos “as decisões judiciais são aptas (ou deveriam ser) a proporcionarem a maximização social de bem-estar através da conformação mais eficiente”. A interpretação teleológica do arcabouço jurídico, de legislação processual e material, que cercam os crimes tributários e o acordo de não persecução penal é, pois, medida salutar. Compatibilizar a essência negocial do acordo de não persecução penal com as particularidades que a persecução penal de crimes contra a ordem tributária é equitativo e atinge as finalidades da lei.
*Carlos Márcio Rissi Macedo é advogado, Sócio do GMPR Advogados, mestre e doutorando em Direito.
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